Os braços escudam o corpo-fetal-despido, as pálpebras em fogo descem, os joelhos, nús, magoados do "caminhar", aproximam-se da boca e os lábios secos, da privação, entreabrem-se. O instinto primordial manda lamber as feridas.
A água desce sobre os ombros, enquanto o corpo se enrosca mais e mais como se daí surgisse o vislumbrar de um novo amanhecer. Aqui, entre estas quatros paredes, é o santuário a que os anjos de asas negras não chegam, aqui as preces que se verbalizam não pretendem ser escutadas, brotam dos cortes da descrença e a voz é o silêncio, aqui pode chorar-se sem se ser observado, sem ter que explicar aquilo que não se coloca por palavras, sem ter que mostrar esta dor que consome, que impera, que lateja aos ouvidos numa surdez momentânea.
E a água desce sobre os ombros e o corpo enrosca-se mais e mais, e já não se acredita num novo amanhecer, mas aqui, nesta redoma de vapor quente o corpo aquieta-se e não espera.
Aqui, questiona-se o nascimento, a existência, a divindade, o abandono. Acarinha-se e amaldiçoa-se a mesma lua de uma só noite e isto não se explica, aqui reside um só corpo na presença dos milhares que se foram, a exposição a todos os males, o observar extasiado do veneno que se sabe percorrer as veias, aqui grita-se sem se ser ouvido.
E a água desce sobre os ombros, ininterruptamente, lavando o corpo, somente o corpo... Aqui ouve-se a mesma música vezes sem conta, chamam-se as lágrimas, arranham-se os braços e traçam-se objectivos que nunca vão ser atingidos, mas não há medo, porque aqui, os anjos de asas negras não entram, não se sentam a contemplar a miséria que cobre a pele. Porque, neste silêncio inundado de luz, neste ritual de pureza momentânea, prepara-se uma nova caminhada... ainda que para o fim.
1 commento:
You write very well.
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